VILA DE MONTE GORDO
A Vila de Monte Gordo ( Vila desde Abril de 2001 ) vista por Sr. Eduardo Brasão Gonçalves, na sua biografia sobre o Algarve.
MONTE GORDO DO PASSADO E DO PRESENTE Pensei escrever algo de interesse antropológico acerca deste recanto do Sotavento Algarvio, onde tanto há ainda a descobrir, recolher e revelar. Para isso, propus-me transmitir o que conheço deste povo de forma a descrever alguns aspectos da personalidade "sui generis" da gente de Monte Gordo. Partirei duma base etnográfica, onde a ergologia se inclui, e passarei a um plano etnológico descrevendo, de mistura com a faina e actividades a que se entregam, episódios que mostram aspectos da sua cultura, do seu folclore, sem esquecer o mundo fantástico das suas superstições. Aflorarei também, mais adiante "franjas da etnopsicologia, porque vou atribuir-lhes predicados que possuem colectivamente. Iniciarei esta exposição com algumas citações que constam na monografia de Vila Real de Santo António, concelho em que Monte Gordo está implantado, partindo assim de dados históricos, que fundamentarão mais concretamente a minha dissertação sobre este extremo ribeirinho e que se situa mais a sul e a oriente do Algarve. "Os moradores de Monte Gordo, que eram estrangeiros, mas descendentes dos antigos habitantes da Vileta de Arenilha, e que tinham mudado pare ali a sua residência, depois que fora arrasada pelo Oceano, queriam que a nova Vila fosse fundada mais próximo da antiga sede, e por isso faziam coro nos queixumes. E todos unidos, embora diversos os seus intuitos, levantaram gritos de oposição contra a nascente Vila. 0 Marquês de Pombal ouvia tudo, mas prosseguia na realização da sua ideia." (pgs 77) " Com o desaparecimento de antiga Vilhota de Santo António de Arenilha ficara a capela da Senhora das Dores de Monte Gordo tendo a sede dessa freguesia. Em 28 de Janeiro de 1775 foi transferido o S. Sacramento desta capela para a nova capela da câmara." (pgs 80)"Esta provisão em que já se fala da freguesia da Vila de Santo António de Arenilha, sem se encontrar documento que a criasse, confirma as nossas presunções. Realmente nem outra coisa se deve afirmar em virtude dos factos que aqui se dão. Foi fundada a vila sem um decreto; nessa vila instituiu-se uma câmara não se encontrando documento legal, que a instituísse; a freguesia de Vila Real foi criada sem uma provisão ou ordem oficial; anomalias estas que só se podem justificar, partindo do seguinte ponto de vista, que naturalmente o Marquês de Pombal teve em intuito. 0 Marquês de Pombal quis reedificar a Vila de Santo António de Arenilha, mas o terreno que esta ocupava estava no seio do oceano. Partiu da hipótese de que a vila fundada mais ao norte era a mesma vila com seu termo, embora destruída nos princípios do século XVII, e não esteve para promulgar decretos de onde se deduzisse que Vila Real de Santo António era diferente da outra vila de Arenilha, precipitada no seio das ondas. É o que parece à vista da falta daqueles documentos, tanto na Torre do Tombo como na câmara eclesiástica de Faro. Dá a provisão, acima transcrita, margem a presumir-se que os habitantes de Monte Gordo, pescadores, e portanto teimosos, talvez até influenciados pelos seus colegas catalães, tentavam eximir-se das suas obrigações como fregueses da nova vila e pretendiam acrescentar a sue capela, constituindo-se independente de Vila Real. Não se explicam as penas aplicadas aos que tentassem acrescentar a capela, nem a afirmação de que a capela deveria desaparecer logo que na nova igreja se pudesse celebrar os ofícios divinos, se em Monte Gordo se não levantassem quaisquer intuitos de acrescentar tal capela, e esses intuitos eram certamente de rebelião às ordens do Marquês de Pombal." (pgs 82 e 83) "Mesmo dentro da povoação, a areia acumula-se de tal forma que algumas casas teimam em ficar soterradas, dentro de pouco tempo. É necessário estar constantemente a remover areia, e ainda assim vêem-se hoje casas, que parece terem sido construídas no fundo de um poço. A igreja, por exemplo, já estaria soterrada, se não tivessem o cuidado de afastar a areia, que em volta forma, montes, que, quase chegam a altura do telhado. Até já falam em levanta-la, continuando as paredes, e fazendo o pavimento ao nível da areia que a circunda. Se tal fizerem, será, segundo a tradição, a terceira vez que assim fazem. As três ou quatro moradas de casas construídas no ponto mais alto e para o lado da praia já foram edificadas. sobre outras. Poder-se-ia talvez ter evitado esta acumulação de areias, se tivesse havido o cuidado de seguir o exemplo do Marquês de Pombal, com a sementeira do penisco. Em pouco tempo teríamos um bom pinhal, que alem de aformosear a beira mar tornaria o terreno firme, e beneficiaria os fundos do Estado, com a sua receita." (pgs, 185) 0 que resta da vila de Santo António de Arenilha é apenas umas ruínas, no local que denominamos Ponta de Santo António de Arenilha. O sino de bronze da igreja que lá existira encontra-se no museu do castelo de Castro Marim, o que facilmente se pode comprovar pela inscrição no mesmo gravada. Depois de ter delimitado a zona em que se encontra Monte Gordo, darei largas à minha tarefa de caracterização dos seus habitantes fazendo realçar algumas curiosas facetas. Proponho-me descrever o género de embarcações que utilizem na faina da pesca e falar de utensílios que são imprescindíveis ao seu labor quotidiano. Precisamente por tal motivo referi que partiria de determinado campo de etnografia, ou seja, a ergologia para a etnologia, encaminhando este estudo pare um horizonte mais lato, que irá inserir-se na sua visão antropológica. Para facilitar a compreensão de alguns pontos que abordarei aqui, vou acompanhar a minha descrição duma representação miniatura, que lhe servirá de complemento. Monte Gordo está dividido em dois blocos distintos: um, ocupado quase exclusivamente com vivendas pertencentes a famílias abastadas e que as vinham habitar apenas na época balnear, encontrando-se ai também os primeiros hotéis; e outra, que se esconde no lado oeste onde vivem os aborígenes. Incluída neste bloco está a igreja, de paupérrima e sóbria arquitectura, construída sobre duas capelas, que pouco a pouco as areias movediças foram engolindo até desaparecerem por completo. Temos, pois, que a urbanização actual de Monte Gordo está disposta ao longo duma espinha dorsal que se orienta perpendicularmente ao oceano, nascendo nas "Quatro Estradas" e vindo morrer no Casino. A poente dessa linha alcatroada, que se projecta da estrada nacional, temos, do lado nascente, Monte Gordo de pequenas vivendas, e a poente (a "penenti", como eles dizem) o "Certão", zona habitada pelos naturais da modesta e pequena povoação. Quem, como eu, visitava a miúde aquelas paragens não podia deixar de ficar abismado com a proliferação desse mundo. Havia famílias que contavam quinze filhos, e o mais vulgar era haver casas com, no mínimo, cinco ou seis descendentes. Os homens dedicavam-se á pesca, quando o tempo se apresentava propício, e as mulheres trabalhavam nas fábricas de conserva de peixe ou eram empregadas domésticas na Vila, ou seja, em Vila Real de Santo António. O termo gentílico "Cuíco" que lhes é atribuído tomam-no eles como verdadeira ofensa, e o que é certo é que os moradores das vilas e povoações vizinhas o utilizam com certo requinte, saboreando algo de pejorativo que julgam contido na referida denominação. Mas qual é, afinal, o significado do termo "Cuíco" ? O Dicionário da Sociedade da Língua Portuguesa regista-o e define o lexema da forma. seguinte, ipsis verbis: "Designação pitoresca dos habitantes da praia de Monte Gordo, perto de Vila Real de Santo António." Apesar de tudo... eles não se conformam. Detestam a denominação. Conheço esta gente desde os meus mais tenros anos e posso afirmar que não sou para eles uma estranha. Sei das suas crenças e superstições, do seu sentido da religião muito peculiar, a da sua cultura. Enfim, conheço-os de há muito. Um dos factos que contribuíram para eu poder observá-los mais de perto foi o convívio com uma "cuíca" que veio "servir" para nossa casa, quando eu contava apenas quatro anos. Mesmo depois de ela ter constituído família continuou a trabalhar, e connosco se conservou por muitas anos. Contactei, pois, intimamente com esta mulher, com os pais dela, e depois com o marido e os filhos que Deus lhe deu. Hoje é já bisavó e avó de muitos netos. Vivia, é claro, no "Sertão", que é uma zona exclusivamente habitada pelos indígenas, como atrás foi referido. A princípio, o topónimo era, "Sertão", e facilmente se explica que assim fosse, porque as cabanas dos pescadores (ainda recordo perfeitamente essas habitações rudimentares) estavam, construídas no desértico areal, a umas dezenas de metros da costa, estendendo-se para o interior onde confinavam com as cabanas do lado do pinhal, a que chamavam "Café Roxo". Os moradores do "Sultão" e os do "Café Roxo" formavam dois clãs antagónicos, a não raro entravam em renhidas desavenças. Coma se operou a transformação e passagem do primitivo termo "Sertão" para o actual "Sultão"? Não podemos esquecer que, desde longa data, grande parte dos pescadores, de Monte Gordo debandava anualmente para Marrocos logo que chegava a época da safra do atum, naquela costa. 0 facto da ouvirem em terras de moirama o vocábulo "sultão" pode ter influído na mudança de "Sertão" para "Sultão". Havia quem dissesse que, nos primórdios, este aglomerado piscatório não se denominava Monte Gordo, mas sim Monte d’Oiro, pelo aspecto doirado das suas dunas, que eu recordo dos tempos de infância. A mão do homem, porém, tudo alterou: Os "buldosers" terraplanaram a praia de lés a lés, mas eu tenho guardado na memória o ondeado e doirado areal que se estendia da praia de "Os Três Pauzinhos" até á Manta Rota. Uma sequência de montes de oiro, que o Sol fazia brilhar de encontro ao azul ferrete deste Algarve enfeitiçado. Ia eu dizendo que o primeiro nome desta localidade foi a de Monte d’Oiro. É possível. Não posso todavia basear-me em documento algum escrito que sirva de garantia da afirmação, mas diz a tradição oral provinda de remotas gerações que assim foi. Como poderá ter sido substituído o referido hipotético primeiro topónimo pelo nome actual: Monte Gordo? Por desgaste? Não me repugna a aceitação desta possível evolução, pois o "falar" dos naturais deste local reveste-se de características linguisticas curiosíssimas e com a maior facilidade "carcomem" ou transformam um lexema. Do traje usual -o cuíco- folgada peça da vestuário, de merino, com capuz, que usavam sempre, mesmo quando dormiam no chão de areia das suas cabanas, nasceu o gentílico que lhes é atribuído e tanto os molesta, operando-se apenas uma natural evolução semântica. Do nome atribuído ao traje, espécie de varino com capuz e mangas largas, resultou o nome dado aos naturais, pois, como atrás referi, nem o despiam para dormir. (pág.6) Os cuícos são muito brigões, mas cobardes em extremo. Aqui está uma marca da etnopsicologia. Individualmente não enfrentam o adversário menos perigoso; formam, no entanto, um clã que é de temer. Oriundos de vária proveniência, os cuícos constituem um heterogéneo aglomerado, havendo tipos morenos, de olhos escuros a cabelos negros, e sendo vulgaríssimos os loiros (ruços, como eles dizem) de olhos verdes ou azuis e pele branca. Ao que parece, o cuíco resulta do cruzamento de tipologias muito diversas e são provenientes da Catalunha, do Sul de França e do norte de África. 0 certo é que esta amalgama, de origem tão vária teve como resultante as características especificas que lhes dão um aspecto inconfundível. Nas suas relações sociais não são bem acolhidos pelos habitantes das povoações vizinhas, devido aos seus hábitos um pouco estranhos e pela tradição da que são gente indesejável. As mulheres revelavam-se aguerridas e era usual entrarem em luta corpo a corpo, puxando os cabelos e praguejando sempre enquanto durava a contenda. Um dia, uma mulher conhecida contava-me, desesperada, que uma vizinha lhe rogara uma praga devido a um desaguisado que tivera com o seu filho. Dizia-me ela: "Menina, ê le tenh’oido àquela ‘esgraçada. Ela me lastemô e ê nã le perdô más na vida aquela palavra. Me regô esta praga, a malvada: Permita Deus qu'a premêra vez qu'o tê Francisco fossi ó mar uma onda o tragasse e aprefundissi." Em certa ocasião, um dos filhos, ainda bem pequeno, espetara um prego no pé. Como disse, o piso era quase todo de areia e os cuícos andavam sempre descalços. Perguntei-lhe se havia ido ao médico com o garoto, ao que retorquiu de imediato: "Ao médeco, por mor de queim? A menina nunca ouviu amentar, que baste atenchar o prego que ospetou a gente numa cebola e prentá-lo num canto da casa ? Pôs é uma santa mezinha!" Tal como se pode apreciar na reprodução miniatura que compus, os pescadoras de Monte Gordo usavam uma corda à bandoleira com o "estrovo" na extremidade. Era ver a agilidade com que lançavam esses cabos presos á cintura para alar as barcas ou as redes. Gente duma supersticiosa religiosidade, tem grande devoção à Senhora das Dores, sua padroeira. Em Setembro, levam a imagem em procissão ao longo da praia, voltando o andor varias vezes para o mar, rogando à Virgem Santa que os proteja na faina do mar, e que às suas redes venha, abundante, o peixe para ganharem o pão dos filhos. Quando, no mar alto, a tempestade os surpreende, a cada onda que eleva a barca pondo em perigo as suas vidas, os pescadores desta zona dizem em coro: "Mais alta era a Cruz de Cristo!" Tal invocação traduz a sue fé ingénua, a sua confiança em Deus. É uma fé simples e superficial que não é suficientemente forte para lhes evitar a superstição. Têm medo de topar com um gato preto, com um corcunda, ou de ouvir o zumbido dum besouro. Tudo isto é para este povo um signo de desgraça, um sinal a avisá-los de que não devem ir ao mar. E se ouvem a palavra "sapateiro", ninguém os fez mesmo ir ao mar. Guardam alguns dias santos como, por exemplo, o dia de Ano Novo, o dia de São José, sexta-feira Santa, a festividade do Corpo de Deus, e Assunção da Nossa Senhora e o dia de Natal. No entanto, o dia mais santo é a da festa da Nossa Senhora das Dores, que se celebra sempre no segundo domingo de Setembro. Nessa dia cantam a "sua" Salvé Rainha. (I) Além da cerimónia religiosa, em que se incorporam na procissão, cumprindo as suas promessas, levando o andor, pondo velas à Virgem, oferecendo pulseiras e cordões de oiro, segundo as suas posses ou de acordo com o compromisso tomado em momento de maior ou menor aflição, há também a parte profana a assinalar o dia. Vem a filarmónica de Castro Marim ou de Loulé, há carrosséis, pistas de automóveis, feira, quermesses e fogo de artifício em abundância. Gera-se um clima de festa na verdadeira acepção da palavra. É festa backthiniana na sua autêntica expressão. (I)- Nota -A Salvé Rainha, única manifestação de canto que se circunscreve ao seu folclore, é cantada de joelhos, em duas datas apenas:- na festa da Senhora das Dores a na procissão das velas, em Maio. A FAINA A barca tem características diferentes das embarcações de outros centros piscatórios, até mesmo da nossa província. As embarcações deste tipo são também denominadas por "estramalhos", porque utilizam redes de tresmalho. A frota pesqueira nunca foi muita numerosa nesta praia, mas presentemente está muito reduzida. A sua actividade é praticamente nula. 0 que resta conserva o seu primitivismo, utilizando a vela e os remos para movimentar a embarcação, embora a maioria já seja movida a motor. Além das redes, serviam-se também da nassa e do "xalavar", a que chamam "ganha pão". A nassa consta de um aro de vimes grossos onde lançam o peixe para traze-lo para terra, para o transferirem duma barca para outra se, houver necessidade de fazer transbordo de pescado. Serve-lhes também de medida. 0 enchalavar toma o nome de "xalavar", nesta região algarvia, além de Olhão, Tavira e Portimão. Ao invés, em Sines e nos outros centros de pesca, não fazem esta distinção. Chamam nassa a toda a rede de forma cónica. Há outro modelo de "xalavar" que é utilizado na apanha das conquilhas, designação dada no Algarve ao marisco que no resto do País e conhecida pelo nome de cadelinhas. Os referidos moluscos são abundantes no Sotavento desta província, não sendo comum na parte de Barlavento. Este tipo tem dimensões equiparáveis as do "xalavar" com cabo. Os conquilheiros vão para as zonas menos exploradas da praia e, durante a baixa-mar, quer coincida ou não com, a madrugada, entregam-se à faina da apanha do referido molusco. É sempre uma tarefa dura e fatigante. O cabo mede um metro e meio aproximadamente. Os conquilheiros passam pela cintura uma faixa da corda que parte da extremidade do cabo e fazem pressão com as mãos no mesmo para conseguirem enterrar o mais possível o "xalavar" na areia. Ao mesmo tempo, deslocam-se de costas, de forma que a areia se liberte através das malhas, ficando apenas dentro de rede cónica as conquilhas. Nesta faina, recolhem também muitas cascas e calhaus, que depois deitam fora quando fazem a escolha, então já no areal. Pode ver-se bem a posição do conquilheiro(1), na representação miniatura. Recordo-me ainda, como se fosse hoje, de ouvir as mulheres apregoarem, na sua voz cantante, bem característica:- "Quem mar... conqui...?" (quem merca conquilhas?).
Andavam por Monte Gordo a Vila Real tantas mulheres e até garotos a vender por cinquenta centavos o que hoje custa entre quatrocentos a oitocentos escudos, quando não mais, na época alta de Verão! Trata-se de um marisco apreciadíssimo. Não há estrangeiro que não goste de conquilhas abertas, e o mesmo se diga dos forasteiros ou dos que aqui vivemos. Outro processo de pesca usado aqui é a arte conhecida pelo nome de xávega. Ao laçar a arte para efectuar a pesca, uma extremidade fica em terra, na praia, e a outra é trazida também para o areal, depois de lançada a rede ao mar largo pelos homens que formam a companha da "calima". Como a rede tem que ficar em forma de parábola e o equilíbrio dos dois ramos e importante para que o peixe entre no "copo", que é o saco colocado ao centro da arte, um dos homens que estão dentro da "calima" vai fazendo sinais com o chapéu para os de terra puxarem a rede mais para a esquerda ou para a direita, consoante for necessário. Dizem os pescadores que não se lançavam nem, se alavam as redes sem ser a cantar. Tinham o seu canto próprio para lançá-las, e podiam fazer vários lances em cada faina. Dependia das condições mais ou menos favoráveis do tempo e de pressentirem ou não peixe na costa. Tive gravado este canto de trabalho, que era tão bonito, mas quase a cair no esquecimento. Hoje, só os velhos pescadores ainda o sabem. É da pesca que vivem; é a pesca que lhes proporciona o sustento. Hoje, constitui também actividade dos mais jovens a indústria hoteleira. Viveu nesta pequena localidade, em tempos que já lá vão, um homem chamado, por alcunha, o "Rompe-Dias", que por vezes tinha um grãozinho na asa. Como atrás referi, não costumavam os pescadores ir ao mar na Sexta-feira Santa. Pois o Rompe-Dias, mestre da barca, disse aos homens da "companha" que sairiam nessa noite, porque o tempo estava de feição. Um dos "companheiros" disse que não cometeria esse pecado, ao que o inflexível mestre respondeu que, sé não fosse, poderia ser despedido... E o pobre homem, pensando na família, decidiu-se e lá foi. Fizeram-se ao largo, efectuaram vários lances, toda a noite labutaram e, ao alar a rede, ao som do seu canto ritmado e dolente, viram, com surpresa, que não apanhavam um só peixe. Na rede, no último lance, vinha apenas, macabra e significativa, uma horrenda caveira. Isto ainda se conta como um castigo de Deus, e garantem os marítimos que sucedeu precisamente há sessenta anos. MONTE GORDO ACTUAL - Longe vai já esta conversa sobre Monte Gordo e a sua gente, esta gente tão exímia em rogar pragas quando alguém lhe faz frente. Vale a pena consultar a recolha feita pela Revista da Associação Para a Defesa e Investigação do Património Cultural e Natural de Vila Real de Santo António, sobre o praguejar dos cuícos. Hoje, Monte Gordo tem outra feição e outras gentes; ostenta um rosto adulterado e uma população heterogénea, muitas vezes maior do que já foi quando não passava dum minúsculo lugar de pescadores. Desapareceram as cabanas para dar lugar a casas de pedra e cal e os telhados já não são de colmo. São casas de estrutura comum, como quaisquer outras. Na Avenida, paralela ao mar, já não se vêem, infelizmente, as pequenas moradias. Em vez delas elevam-se monstros de cimento, que descaracterizaram este burgo namorado do mar, desrespeitando a volumetria, e atendendo apenas à incontida negociata de empresários, empreiteiros e construtores. Ai vão, para atestá-lo, as fotos do que foi Monte Gordo até ao limiar dos anos 60. Tal como se procedeu em Albufeira e em tantos outros pontos do Algarve, é um aglomerado desordenado, uma mole de cimento junto ao mar, que cresceu sem o traçado prévio dum plano criteriosamente concebido, como bem merecia ter tido. Monte Gordo não e só uma estância de Verão. No Inverno, passam por cá milhares de pessoas vindas de outros países: ingleses, e holandeses principalmente. São, na sua maior parte, turistas da terceira idade em busca do clima ameno destas paragens, do sossego que aqui se desfruta. Tem primordial importância o facto da morfologia desta zona circunvizinha, à excepção de Castro Marim, ser plana e permitir, deste modo, o exercício a pé, a corrida e os agradáveis passeios de bicicleta, que muita preferência merecem sobretudo dos turistas holandeses. O Sapal, prolongamento da Ria Formosa, oferece-lhes uma oportunidade de observar espécies curiosas de aves migratórias. Hoje há vários grupos particulares que organizam interessantes passeios fluviais pelo Guadiana acima. Todas estas iniciativas vão melhorando o viver dos habitantes e apagando as diferenças entre os naturais de Monte Gordo. Apesar, da escolaridade obrigatória, muitas são as crianças que abandonam a escola. O seu falar mantém a mesma toada e imprecisão de linguagem, mesmo os escolarizados. Vou terminar esta reflexão sobre Monte Gordo com fotos desta povoação feitas por volta de 1940 e o aspecto actual da mesma. Faltam espaços verdes, mas sobra cimento... Até na própria praia os restaurantes roubaram a vista para o sedutor azul das águas do mar! Chegará tarde demais o benefício dum ordenamento do território, bem concebido, para proporcionar uma melhor qualidade da vida aos habitantes da Costa Algarvia. BIBLIOGRAFIA OLIVEIRA, Francisco Xavier D’Athaíde – monografia de Vila Real de Santo António s/d/ MACHADO, José Pedro - coordenador de - Dicionário da Língua Portuguesa, vol. II, (Edição da Sociedade da Língua Portuguesa)
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E-mail: Vitor Madeira
Actualizada:domingo, 31 de Março de 2013
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